"Se eu estou a vender, não é porque quero, mas porque, se eu não zungar, os meus filhos morrerão de fome"

Por Laurinda Gouveia 

Este relato foi editado e adapto do original publicado por Laurinda Gouveia na sua página de Facebook no dia 05 de agosto de 2017, dentro da rubrica "O Retrato da Vida Delas" que visa dar visibilidade aos problemas que afligem as mulheres mais marginalizadas da cidade de Luanda. O Ondjango Feminista publica este relato com a devida autorização da autora. 

“Se eu estou a vender, não é porque quero, mas porque, se eu não zungar, os meus filhos morrerão de fome.."

Antónia é  zungueira há 8 anos. Tem três filhos. Foi abandonada pelo esposo há sete anos. Parou de estudar na 4ª classe.

Normalmente, o seu dia de trabalho começa às 4 horas da manhã, hora em que vai à busca dos bolinhos que vende. Antónia dá início às vendas às 5 horas da manhã, na Vila de Viana. Às vezes, chega até à Vila Chinesa, zungando com os bolinhos. Se tiver esgotado os primeiros bolinhos com sucesso, vai à busca de mais bolinhos para vender. Assim, o seu dia de trabalho termina geralmente pelas 18 horas.

Antónia deve apresentar diariamente o lucro à sua patroa, o mínimo esperado sendo o equivalente de 5 a 7 mil kz por semana. O seu salário ficará no valor de um dia de venda por semana.

Antónia é mãe de três crianças. Uma vai à escola, sendo as outras ainda muito pequenas. Por essa criança inscrita, Antónia deve pagar o valor de 1500kz por mês.

Certo dia, como é  de hábito,  Antónia estava a ser perseguida pelos fiscais, que a todo custo queriam vê-la longe da via onde tem zungado com as companheiras. Por poucos segundos, escapou de um atropelamento por uma viatura que vinha em alta velocidade. Continuou então a fugir dos fiscais, lançando as seguintes palavras: "Se eu estou a vender, não é porque quero, mas porque, se eu não zungar, os meus filhos morrerão de fome. Não há emprego. Eu parei de estudar na 4a classe, o governo não me ajuda, vou fazer como? Terei mesmo que passar por isso, não por mim, mas pelos meus filhos."

Por algum momento, Antónia parou de zungar por causa das corridas de ficais. Infelizmente, enquanto descansava, o fiscal conseguiu prendê-la. Naquele momento, as suas companheiras aproximaram-se. Começou então um forte conflito entre a zungueira e o fiscal, a quem se deu a missão oficial de manter a cidade limpa, entenda-se, livre de zungueiras.

Em plena discussão, Antónia, num reflexo defensivo, apertou com as mãos os órgãos genitais do fiscal. Este, por seu turno, puxou os seios da mesma, dobrando-os por três vezes. Antônianão resistiu e morreu na hora. Segundo informações, o fiscal que cometeu o tal assassinato, continua a perseguir zungueiras. Entende-se, inclusive, que esteja em pleno exercíciodas suas funções. 

Tal como aconteceu com a zungueira que foi atropelada este ano e com outras vendedoras que são mortas a trabalharem para sustentarem as suas famílias, todos os dias, as mulheres zungueiras passam por situações semelhantes à de Antónia.

O que temos a dizer sobre isso? Qual é a nossa posição enquanto sociedade? Como podemos agir em torno do acto necessário de responsabilização do Estado?

Com quem hão-de ficar as suas crianças, uma vez que pai abandonou a família antes de Antónia morrer? O Estado tem programas para se enquadrar e se encarregar dessas três crianças que acabam de perder o seu único suporte?

Como é que este caso específico nos alerta sobre a falta de respostas às questões urgentes de desigualdade e injustiça social? O que isso nos diz sobre o dito combate à criminalidade, que encoberta a irresponsabilidade social do Estado a vários níveis? A solução será sempre excluir ou eliminar quem justamente mais precisa do apoio do Estado?

Precisamos de pôr fim à esta injustiça contra as mulheres, contra as mulheres pobres, contra as mulheres trabalhadoras.

Previous
Previous

“Parecia trabalho escravo. Entrava às 6h00 e saía às 20h00 e, por vezes, mais tarde ainda”

Next
Next

"Descobri que estava grávida daquele monstro"